quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Um certo Portugal - 2

Um certo Portugal

No passado Domingo morreu um certo Portugal.

Um Portugal profundamente conservador. Um Portugal influenciado pela ICAR - Igreja Católica Apostólica Romana (como gosta de dizer um amigo meu). Naquilo que essa influência terá de negativo e positivo. Um Portugal que ainda vive mal com a Democracia e a Liberdade. Um Portugal pouco moderado e tolerante. Um Portugal que não está, não quer estar "em linha com os novos tempos". Um Portugal parado.


Esse Portugal não desapareceu de vez, continuará a existir. Ali onde a modernidade ainda não chegou, onde a economia ainda é débil. Onde a educação ainda não é para todos. Onde não há justiça social. Os resultados do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez são o espelho das nossas assimetrias. Das nossas injustiças sociais.

Por isso, neste referendo, os seus resultados, devem ser visto com muita atenção. Devem ser um ponto de partida para uma análise profunda dos dois "Portugal" que coexistem. Aquilo que distingue o Interior do Litoral e em especial o Norte do Sul é o desenvolvimento. Um desenvolvimento desigual. Montesquie falava em 3 poderes - Legislativo, Executivo e Judicial. A estes acrescento o poder Religioso. Hoje junta-se o poder Económico e o poder Mediático (seguindo Ramonet e Eco). O poder da Igreja já não é o que era, mas existe. Existe porque é ela a única instituição que não abandonou o interior. Daí que mesmo não concordando com o modo como a mais das vezes esse poder se faz sentir, devo reconhecer, contudo, que foi ela a única que não abandonou o interior, as aldeias perdidas para lá do Marão e nas profundezas das Beiras. A sua influência faz-se por acção própria e por omissão do Estado, ou seja, de todos nós.

Um Portugal imóvel e sofrido e abandonado. Um país, dois sistemas.

Daí que não me admire com os resultados do referendo nem tão pouco com a "mancha vermelha do Não". É natural. Nem outra coisa seria de esperar. Só quem não conhece a realidade do interior, a complexidade social de Trás-os-Montes, do Douro e das Beiras, se admirará. Nesses locais a modernidade do litoral ainda não chegou. A qualidade de vida é má - claro que não se passa fome, a terra é generosa. Mas a fome cultural, a fome de acessos, a fome de educação, a fome de saúde, essa existe e em força. Terra onde a mulher ainda é vista como "menor", cuja violência física contra ela e contra as crianças é uma realidade e até, bem mais grave, uma "naturalidade" (que os representantes da Igreja não contrariam, sobretudo por omissão). Um Portugal ainda cheio de resquícios salazarentos - feliz na pobreza, alegre na ignorância, reverente ao poder. Uma realidade que urge combater. Mas que não faz parte dos programas eleitorais dos partidos - ali não há votos ou antes, não são em quantidade suficiente para influenciar resultados finais.

Se pensarmos que no final do século XX e nestes inícios de sec. XXI os poderes apresentados por Montesquie sofreram uma enorme mudança, na qual o poder económico e o mediático são hoje os dois principais poderes, acima do Legislativo, Executivo e Judicial, facilmente se percebe esse atraso de certas franjas do território - ainda lá não chegaram os principais poderes, Económico e Mediático. Nem tão pouco desapareceu, como no restante, o poder religioso.

Existe um Portugal que, infelizmente, não conta para o rosário dos media, um Portugal da “lapada” e das desavenças resolvidas a tiro de caçadeira. Um Portugal que até nem mora longe de nós, que está mesmo aqui, na fronteira da Área Metropolitana do Porto e nas aldeias do litoral entre Douro e Minho. O Portugal das mulheres duplamente de preto – pela perda e pela indiferença nos seus direitos. Delas que sofrem as agruras de uma vida de sacrifício pelo bem-estar dos filhos e pelo “aguentar” dos desmandos do marido (e antes do pai). São elas que aguentam o excesso de álcool do companheiro, da sua filosofia de violência e do seu, não tenhamos medo das palavras, irresponsável modo de vida. Esse Portugal que alguns jornalistas e cronistas preferem salientar pelo seu lado exótico (o dos pastores, das romarias, dos artífices, etc) ajudando com isso a esconder uma realidade nua e crua de violência física e psicológica. Um Portugal que se sente perdoado pela mera ingestão da hóstia domingueira. Um Portugal passado e que vive ainda no “ideal moral do salazarismos: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos” – Gil, José, “Portugal, Hoje: O Medo de Existir”, Relógio D`Água, Lisboa, 2004.

Por isso, urge mudar esse Portugal. Que só muda com desenvolvimento económico, com acesso à cultura e com uma forte aposta na educação e nas infra-estruturas. O caminho não é o de fechar escolas e centros de saúde a esmo. O caminho é de esforço. Um grande esforço do país desenvolvido em prol do interior esquecido. Uma “quase” revolução e para a qual, para a sua execução, só existe um rumo possível. Só com a Regionalização. Que considero como o principal instrumento para o combate às desigualdades.


Por último, um sinal de diferença. Desta feita, o voto jovem foi fundamental. A mobilização do eleitorado jovem foi marcante para a vitória do SIM. A "Geração Hi5 " foi determinante e mostrou que não está alheada da sociedade. Os jovens mobilizam-se por causas. Causas, é aquilo que os partidos não têm tido. Daí o divórcio.

Breve Nota: Os partidos de centro direita e direita voltaram a estar do lado errado do sentir da maioria dos portugueses. Os dois líderes, Marques Mendes e Ribeiro e Castro (com Paulo Portas) deram, uma vez mais, um péssimo contributo para a direita. Tomaram partido pelas forças mais conservadoras do seu espectro político. Mais um tiro no pé. Há certas almas que não aprendem...



Publicado no Primeira Mão



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