quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Pelo Sim, Pelo Não - O Referendo

Conforme prometido, aqui ficam os textos solicitados a Carlos Abreu Amorim e João César das Neves, dois conhecidos Professores Universitários, sobre o Referendo do próximo domingo.
Aos dois, o nosso agradecimento público pela contribuição.




Pelo SIM:

"A lei em vigor tem 23 anos de vigência. Favoreceu o aborto clandestino. Propiciou enormes proventos financeiros para abortadeiras, clínicas ilegais e, ultimamente, para as unidades de saúde espanholas dedicadas a essa actividade e estrategicamente colocadas ao longo da fronteira.
Durante todo este tempo, os dedos de uma mão são excessivos para contar o número de defensores da actual legislação penal sobre a IVG que tentaram alguma solução alternativa à penalização. Pelo contrário. Quase sempre que discutia com alguém do "Não", agora e há 8 anos, percebia, com espanto, que grande parte dos acólitos dessa posição acumulavam o seu antagonismo à despenalização da mulher com uma resistência, mal camuflada, em relação às actuais disposições do Código Penal. Designadamente, quanto às excepções já consagradas no art. 142.º.
Só quem não tem assistido a debates por esse país fora - e não apenas aqueles que têm acontecido nos principais media, onde o "Não" prefere assumir uma falsa moderação - pode ignorar o sentido maioritário do voto "Não", aquele que defende que há uma pessoa humana desde o momento da concepção: o seu voto é um "Não" a toda e qualquer possibilidade de realizar a IVG. Inclusivamente são contra as escassas aberturas da actual lei.
Ao invés do que tem sido apregoado, César das Neves não é minoritário - aquilo que ele diz é o que pensa o "Não" profundo, ele é a regra e não a excepção.
Mas quando a vergonha é um bem escasso, qualquer ideia vale desde que sirva para convencer os mais incautos. A uma semana do referendo, o "Não" tira da cartola uma proposta que desmente quase tudo o que disse e fez nos últimos anos: «A Plataforma "Não Obrigado" defendeu medidas "ressocializantes" para as mulheres que pratiquem um aborto, rejeitando o seu julgamento, criando-lhes um projecto de vida e evitando que voltem a recorrer à Interrupção Voluntária da Gravidez».
Pois é. O aborto continua clandestino, mas ressocializa-se (note-se que, por definição, este fim já integra a sanção penal).
Quem tem dinheiro vai a Espanha e quem não pode fica cá arriscando a saúde e a vida, mas ressocializa-se.
A IVG manter-se-á como crime, as polícias continuarão a investigar, o ministério público a acusar e os Tribunais a julgar, mas ressocializa-se.
Portugal permanecerá deslocado do espaço cultural e legal que diz quer ser seu, mas nós é que sabemos, nós somos originais e ensinamos todo o resto do mundo a que juramos pertencer, porque aqui ressocializa-se.
Ressocializar é um verbo com alguma capacidade de conjugação comicieira a 8 dias da votação. Mas qualquer um medianamente informado - vote sim ou não - sabe bem que se o "Não" ganhar o verbo que persistirá será outro: penalizar! Precisamente o mesmo que esta gente exigiu, sem vacilar, desde há 23 anos."

Carlos Abreu Amorim





Pelo NÃO:


Pela vida


"A minha posição no referendo é muito simples: eu voto «não» porque sou pela vida. Em primeiro lugar pela vida daquele embrião. A vida daquele pequenino ser, que tantos querem negar, mas que está indiscutivelmente em jogo naquele acto. Discussões filosóficas sobre o início da vida não anulam este drama claro.

Mas há mais vidas em causa. Esta não é a única vida que está em jogo. Voto «não» também pela vida da mãe, que sofrerá aquele acto toda a vida de forma que ninguém, senão ela, entende. E ainda pela vida do pai, dos avós, irmãos, igualmente terrivelmente afectados, e de quem ninguém fala.

Há ainda a vida dos médicos e enfermeiras, que sendo profissionais de saúde, ficam com as suas carreiras marcadas pela morte higiénica. Finalmente, ainda está em causa a cultura da vida em Portugal. Porque a civilização do país é marcada decisivamente por esta decisão. Estamos a discutir se os nossos impostos, os nossos hospitais vão passar a eliminar vidas de forma corrente. Por isso, não!"

João César das Neves

5 comentários:

Pedro Botelho disse...

João César das Neves: "Voto «não» também pela vida da mãe, que sofrerá aquele acto toda a vida de forma que ninguém, senão ela, entende."

Ela e o João César das Neves é claro, senão não seria necessário o «não». Ela a prazo, o César das Neves num abrir e fechar de olhos...

Anónimo disse...

Eu voto sim no referendo...no entanto....




Alguns conceitos que convém relembrar:

Interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto voluntário: decisão tomada por uma mulher com o objectivo de interromper a vida de um feto humano;

Feto, do latim fetus: ser resultante da concepção, nos animais vivíparos, a partir do momento em que apresenta as características gerais da vida da espécie, mas ainda em fase uterina;

Suicídio: decisão tomada por alguém com o objectivo de interromper a sua própria vida;

Eutanásia: decisão tomada por alguém com o objectivo de interromper a sua própria vida, mas por que por incapacidade física carece de auxílio de outra pessoa para a concretizar;

Pena de Morte: sentença de carácter judicial com o objectivo de interromper a vida de alguém cuja conduta levou uma dada comunidade a decidir sancioná-la com a morte.


A questão da Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgo aborto voluntário, tão polémica que já deu origem a dois referendos tem, na minha opinião girado à volta da questão dos direitos e dos deveres. Se a mulher tem ou não o direito de interromper uma gravidez que não deseja ou se, pelo contrário, tem o dever de a levar até ao fim, mesmo não o querendo.
É uma maneira de encarar esta questão, legítima sem dúvida, mas redutora e característica da forma de pensar da sociedade contemporânea ocidental, que normalmente a partir de um facto concreto parte para a abstracção generalista, tendente a fazer tábua rasa das questões fundamentais, e amarrando-se à perspectiva mais simplista do “direito e do dever”, normalmente demasiado circunstanciais para uma construção empírica séria.
Ao se persistir em manter a polémica no âmbito desta esfera – dos direitos e dos deveres -, estamos a conduzir toda a discussão para o campo das argumentações inconciliáveis, da diabolização permanente do ponto de vista antagónico, defendido pelo outro, e para a resolução da questão através do denominador mínimo da quantidade, ou seja ganhará a posição que mais gente arregimentará para a sustentar. É um método, é um caminho, é democraticamente aceitável, mas quanto a mim é muito pobre e demasiado fácil para a matéria em questão.
Quando falamos na interrupção voluntária da gravidez, estamos a falar em terminar com a vida de alguém, que atendendo ao seu estado evolutivo – ainda intra-uterino – é incapaz de opinar sobre o que ele inexoravelmente pesa. É uma decisão de alguém, unilateral, em relação à vida de outra pessoa – a partir do momento em que um espermatozoide humano fecunda um óvulo humano, o resultado disso mesmo é um ser humano, porque não pode ser outra coisa, e outros entendimentos sobre isto não passam de sofismas.
O que está nesta questão em causa – Interrupção Voluntária da Gravidez – é não nem mais nem menos que o valor que cada um de nós dá à vida humana perante outros valores, ou seja é o entendimento que fazemos sobre a problemática se a vida tem valor intrínseco para se sobrepor a todas as outras coisas ou questões.
Eu acho que não tem.
Considero, que em determinadas circunstâncias, há coisas mais importantes do que a própria vida humana.
Considero absolutamente legítimo que uma determinada pessoa, perante circunstâncias da sua própria vida, que nem sequer precisam de ser especialmente dramáticas, decida que a mesma não valha a pena ser continuada.
Considero absolutamente legítimo que uma pessoa, perante uma vida em sofrimento permanente, sem qualquer esperança de cura, incapaz de agir fisicamente contra si própria, solicite o auxílio de outro para terminar com a sua própria vida.
Considero absolutamente legítimo que uma dada comunidade, afrontada por um crime hediondo, decida por termo à vida do membro que o cometeu. A esta consideração acrescento que embora seja a favor da aplicação da pena de morte, sou contra sua concretização, apenas porque há sempre hipótese de erro judiciário, e no caso de um executado a irreversibilidade da pena não é possível. Para evitar isso, uma condenação à morte teria apenas uma força simbólica – muito importante – e a sua tradução seria a prisão perpétua.
Em todos os exemplos que dei, para além – muito para além – da questão dos direitos e dos deveres – o que está implícito, com uma gritante permanência e clareza, é o valor que cada um de nós – ou comunidade – dá à valor humana.
Eu não valorizo muito a vida de um assassino sádico, de um violador, da mesma forma que não valorizarei muito a minha própria vida se a mesma significar sofrimento, incapacidade permanente ou se não me fizer qualquer sentido.
Por tudo isto admito que uma mulher, perante uma gravidez não desejada, que lhe causará danos que só ela poderá mensurar, possa decidir matar o ser humano que carrega no seu útero. Tudo se jogará não na esfera do direito ou do dever, mas sim da valorização intrínseca da própria vida.
Para terminar julgo ser razoável dizer que se no próximo referendo a Interrupção Voluntária da Gravidez – aborto voluntário – for dada á mulher a faculdade de decidir livremente e sem qualquer condicionante sobre uma vida alheia, não fará mais sentido a culpabilização social do suicídio nem a proibição legal da eutanásia, até porque ambas acções incidem sobre uma decisão por nós tomada sobre a nossa própria vida.

Work Buy Consume Die disse...

"eu voto «não» porque sou pela vida"... Só esta frase dá náusea...

Pedro Botelho disse...

Mário Nuno Neves,

Concordo com quase tudo o que diz, que corresponde quase exactamente às minha próprias ideias sobre terminação de vida individual humana intra-uterina até ao limiar (infelizmente pouco preciso, mas provavelmente evitado no proposto limite das 10 semanas) de formação de um sistema nervoso central do feto susceptível de sensibilidade, bem como sobre a legitimidade da eutanásia solicitada e do suícidio, solitário ou assistido.

E também eu adiro às penas de morte e de prisão perpétua para crimes muito graves, especialmente crimes que envolvam a inflicção intencional de sofrimento excepcional ou perda de vida -- e não necessariamente apenas sobre ou de vida humana.

No meu desejável sistema penal, essas duas penas, a capital e a reclusão perpétua, seriam obrigatoriamente passíveis de comutação de uma na outra por decisão ponderada do condenado. Ou seja, parece-me eminentemente racional e moral -- essas duas vertentes da mente humana deveriam andar sempre ligadas, uma vez que se centram na captação dos nexos de causalidade entre as acções e os seus efeitos -- que se faculte, sempre e sem excepção alguma, por imposição explícita da lei, a eutanásia a um condenado a reclusão perpétua que a solicite [1], ainda que de perfeita saúde, bem como a reclusão perpétua a um condenado à morte que, ainda que condenado pelos mais abomináveis dos crimes, deseje a comutação simétrica.

Note que este sistema de opção «pena capital vs. reclusão perpétua» não relegaria a pena capital a uma posição de simples simbolismo nem a rebaixaria à situação de expediente pseudo-moral da vingança colectiva; apenas atribuiria ao condenado a última palavra, impondo-lhe uma ou outra forma de exílio forçado da sociedade, consoante o seu apego à mesma, uma opção que teria a vantagem de respeitar a sua própria liberdade individual até onde isso é racional e moralmente possível, ou seja até ao limite do seu destino como ser individual e social.

Claro que poderemos ainda por muito tempo contar com esse sinistro espantalho a que os bons espíritos do amor a rodos sem exame racional costumam chamar a «santidade da vida» -- brandido muitas vezes precisamente pelo tipo de gente que tão gostosamente oferece filhos à Pátria em tempo de guerra como coloca as suas economias no estrangeiro quando a pátria precisa delas, como escreveu Henry Roorda [2] -- mas também me parece que a actual descriminalização do aborto até às 10 semanas será, independentemente das razões em seu favor, um passo no longo caminho da boa luta em prol da inteligência e da moral.

«Santidade» da vida! Como se a vida e os seus reflexos automáticos fossem tudo, e a mente e a sua vontade manifesta fossem nada...
______________________

[1] O caso do condenado a reclusão perpétua Ian Brady, o co-autor dos assassinatos de crianças, de 1963 a 65, que ficaram conhecidos como os Moors murders, é um exemplo da irracionalidade que subsiste nos sistemas penais modernos: depois de tentar repetidamente o suicídio, está mantido há anos consecutivos no hospital prisional sob condições de imobilização e alimentação forçada, apesar de solicitar o direito de morrer. Mas, ao que parece, a sua vida é tão santa e o seu sofrimento tão indispensável à sociedade, que não se lhe pode conceder (e à bolsa dos contribuintes) sequer uma pequena generosidade, sob a forma do suicídio consentido: ainda recentemente, há menos de um ano, as autoridades detiveram uma mulher que tentou proprocionar-lhe uma dose de paracetamol suficiente para a libertação derradeira do seu triste estado de «santidade» [o seu livro The Gates of Janus -- um discurso libertário extremo sobre o poder, inteiramente amoral, mas não desprovido de alguma inteligência -- está ilegalizado no Reino Unido, mas foi publicado na editora marginal americana Feral House].

[2] No seu pequeno mas notável livro O Meu Suicídio, que termina efectivamente instantes antes do acto que justificou o título, publicado em português na colecção &ETC.

Pedro Botelho disse...

«JCN: Discussões filosóficas sobre o início da vida não anulam este drama claro.»

João César das Neves,

Já agora mais um comentário: as «discussões filosóficas» -- a menos que as suas discussões se processem preferencialmente com ignorantes -- não são sobre o «início da vida», e nem sequer sobre o início de uma vida individual humana (que, ao que suponho, preclude até, na sua filosofia, a utilização da pílula abortiva dita «do dia seguinte») mas sobre o início do sofrimento.

As duas coisas -- vida e sofrimento -- não devem ser sinónimas, a não ser, ao que suponho, para os entusiastas da optimização da vida futura no Além.